O avanço da conectividade, da inteligência artificial e dos sistemas embarcados têm transformado os veículos em verdadeiros computadores sobre rodas e, com isso, a necessidade de proteger esses sistemas contra invasões e alterações se tornou uma prioridade estratégica para a indústria automotiva. Com esse pano de fundo, a AEA – Associação Brasileira de Engenharia Automotiva realizou, no último dia 15 de maio, no auditório da UNIP Vila Clementino, em São Paulo, o Seminário AEA de Segurança e Conectividade, evento marcado pelo lançamento do White Paper Cybersecurity 2025.
Com o tema “Tecnologias de Conectividade e Segurança Veicular a Serviço da Vida”, o evento reuniu especialistas da indústria automotiva para debater como a conectividade, a inteligência artificial e outras tecnologias emergentes estão moldando o futuro da mobilidade com foco na preservação de vidas e na segurança no trânsito.
Na abertura, Everton Lopes, vice-presidente da AEA, ressaltou que a conectividade deixou de ser algo distante e hoje está no centro da estratégia das empresas, da indústria e das regulamentações. “Veículos que se comunicam entre si, com o ambiente e com os usuários representam grandes desafios, mas também oportunidades extraordinárias. Esses debates são essenciais para que possamos construir propostas de regulamentações sólidas, aplicáveis e capazes de reduzir acidentes e salvar vidas”, afirmou.
Já Hilton Spiler, diretor de Segurança Veicular da AEA e um dos coordenadores do seminário, lembrou que o dia 17 de maio é celebrado como o Dia Mundial da Internet, tecnologia que revolucionou a forma como pessoas e objetos se conectam. Ele destacou a importância do evento para refletir sobre os avanços conquistados e os desafios ainda pela frente: “Percorremos um longo caminho, mas temos muito a fazer. A AEA, com mais de 40 anos de atuação, mantém seu compromisso de fomentar discussões relevantes para o futuro da mobilidade.”
O circuito de palestras começou com João Carvalho, engenheiro do ETAS, fornecedor de soluções de software para a indústria automotiva, que apresentou os principais destaques do White Paper Cibersecurity 2025. O documento foi elaborado de forma colaborativa, com divisão de capítulos entre autores, discussões em grupo e participação de especialistas convidados em temas como infraestrutura segura, pentesting e segurança de sistemas embarcados.
O estudo resgata a trajetória da cibersegurança desde os primeiros vírus computacionais até os desafios contemporâneos de proteção dos veículos conectados, automatizados e definidos por software (os chamados Software-Defined Vehicles – SDVs). Em um cenário no qual automóveis possuem milhões de linhas de código e múltiplas interfaces com o ambiente externo, garantir a segurança digital se torna tão importante quanto assegurar o funcionamento mecânico.
Entre os principais pontos do documento, destaca-se a diferenciação entre segurança cibernética e segurança funcional — dois conceitos distintos, mas complementares:
A segurança cibernética trata de ameaças intencionais, como ataques planejados por indivíduos ou grupos. O foco está em entender quem representa o risco, suas motivações e impactos. Busca-se garantir a confidencialidade, integridade e autenticidade dos dados.
Já a segurança funcional aborda falhas não intencionais dos sistemas elétricos e eletrônicos. Avalia como essas falhas ocorrem e seus impactos, com o objetivo de assegurar a integridade e consistência do funcionamento dos sistemas. O White Paper Cybersecurity 2025 também analisa regulamentações nacionais e internacionais já em vigor, os impactos dessas implementações em outros mercados e os desafios a serem enfrentados no Brasil.
Na segunda palestra do dia, o engenheiro de Produto Sênior da Harman, Flavio Lira, apresentou soluções que utilizam câmeras e sensores internos para monitorar o comportamento de motoristas e ocupantes. Distrações como uso do celular, cansaço e estresse afetam diretamente a atenção ao volante. Para lidar com esses fatores, câmeras internas detectam o rosto do condutor, sua frequência cardíaca, posição da cabeça e padrão respiratório, permitindo avaliar seu nível de atenção e estado emocional com base no modelo de Paul Ekman, que identifica expressões como raiva, medo, surpresa e tristeza.
Sensores de ultrassom também auxiliam na identificação dos ocupantes, detectando, por exemplo, a presença de crianças ou animais esquecidos no veículo. As informações coletadas permitem que o sistema envie alertas e feedbacks ao motorista, promovendo maior segurança dentro do carro.
Já o diretor de pesquisa da Facens, Roberto Silva Netto, apresentou o projeto Conecta 2030, voltado à segurança de pedestres por meio da conectividade veicular. A motivação para o projeto surgiu diante do crescente número de atropelamentos, inclusive em faixas de pedestres, muitas vezes causados por falta de visibilidade ou atenção dos motoristas e pedestres.
A proposta é criar um ecossistema conectado e cooperativo capaz de detectar usuários vulneráveis nas vias, utilizando tecnologias como 5G, C-V2X e gêmeo digital. Com base no campus da Facens, o projeto desenvolve um ambiente de realidade mista, simulando situações de risco sem expor pessoas a perigo real.
A infraestrutura inclui Mobile Edge Computing (MEC), que permite o processamento rápido de dados para respostas quase em tempo real, além de sensores e comunicação veicular para identificar a presença de pedestres. Como destacou Silva Netto, a meta é “fazer com que a cidade veja e o carro fale”, promovendo mais segurança nas ruas e rodovias.
O último conteúdo da manhã ficou a cargo de Leimar Mafort, gerente de Engenharia da Bosch, que apresentou as aplicações da tecnologia Ultra Wide Band (UWB) para sistemas de acesso veicular.
Com previsão de que, em 2025, mais da metade dos veículos brasileiros tenha algum tipo de acesso por rádio, o destaque é para o uso do smartphone como chave digital. A tecnologia UWB permite acesso seguro e passivo ao veículo, sem necessidade de ações do motorista, e ainda possibilita o compartilhamento da chave com outras pessoas, com configurações personalizadas. Além disso, o UWB oferece localização precisa, pode ser integrado a sistemas de detecção de presença e representa uma evolução natural dos sistemas atuais baseados em antenas. A tendência é que a chave digital se torne padrão global, com apoio das OEMs, fabricantes de smartphones e iniciativas como o Car Connectivity Consortium.
A parte da tarde foi inaugurada com o Major Muniz, do Corpo de Bombeiros do Estado de São Paulo, trazendo um panorama do sistema eCall (chamada automática de emergência). Segundo ele, o Brasil está avançando na adoção desse sistema, seguindo modelos internacionais como o europeu. Recentemente, o Projeto de Lei nº 217/2024 propôs a obrigatoriedade do eCall em veículos novos, vinculando seu acionamento aos Corpos de Bombeiros Militares estaduais. O sistema promete agilizar o resgate em acidentes ao transmitir dados como localização e tipo de colisão, mas enfrenta desafios como a adaptação da infraestrutura de emergência e a padronização tecnológica.
Se aprovado, o PL 217/2024 colocará o país no mesmo patamar de nações como os da União Europeia, onde o eCall já salvou milhares de vidas desde 2018. A experiência internacional serve de modelo, mas a adaptação à realidade brasileira será essencial para o sucesso do sistema.
A palestra de Emerson Batagini, engenheiro sênior da Bosch, abordou a evolução dos sistemas de frenagem, destacando desde os métodos rudimentares, como os freios por sapata em carroças, até os sistemas modernos com atuação eletrônica. O controle eletrônico de estabilidade, que completa 30 anos e se tornou obrigatório no Brasil a partir de 2024 para veículos leves e 2025 para pesados, foi um dos marcos mencionados. Tecnologias como ABS, ESP e assistentes de partida em rampa foram apresentadas como exemplos do avanço que salvam vidas no uso cotidiano.
Entre as tendências, Batagini apontou freios com atuação elétrica sem fluido, integração com sistemas de direção e novos requisitos voltados a veículos eletrificados. Além disso, a cibersegurança passa a ser um requisito essencial, com os freios baseados em software. A conclusão reforça a importância da frenagem segura como pilar central da evolução automotiva: “melhor do que acelerar é poder parar em segurança”.
Seguindo no tema de frenagem, Felipe Villasboas, gerente de Engenharia Elétrica e Eletrônica da General Motors, destacou a importância da frenagem automática de emergência (AEB) como parte dos sistemas avançados de assistência ao condutor (ADAS). O AEB atua como um recurso de emergência que assume o controle do veículo para evitar colisões, especialmente quando o motorista não reage a tempo. Apesar de não se tratar de um sistema autônomo, o AEB exige tecnologias robustas como sensores de radar, câmeras e, futuramente, a fusão com lidars (radares com tecnologia a laser), o que permite melhorar a resposta em condições adversas e em velocidades mais altas.
Villasboas ressaltou os desafios técnicos enfrentados, como detecção de objetos irregulares e interferências causadas por condições climáticas e iluminação. O caminho para um AEB mais eficiente, segundo ele, está na combinação de sensores (radar + câmera), elevando a precisão e confiabilidade do sistema — conhecido como Enhanced AEB.
Fechando o dia tivemos Leonardo Giglio, diretor executivo da Humanetics para a América Latina, maior fabricante do mundo de Anthropomorfic Test Devices (ATDs), como são chamados os bonecos de crash test.
Giglio tratou da evolução dos ATDs, que estão acompanhando, por sua vez, as atualizações na segurança veicular, saindo do foco exclusivo em lesões mais simples e frequentes — como fraturas de costela, fêmur e traumas cranianos — para enfrentar ferimentos mais complexos e menos visíveis, como lesões torácicas severas, fraturas de tornozelo e de acetábulo.
Esse avanço exige a superação das limitações dos antigos ATDs, que na década de 1970 tinham 10 canais para coletas de dados e hoje possuem 155. A indústria já ultrapassou os testes com barreiras rígidas únicas e agora trabalha com simulações mais completas e adaptadas à realidade, buscando reduzir drasticamente os níveis de lesões.
Hoje, os esforços se concentram em desafios, como a biofidelidade dos ATDs, ou seja, de torná-los cada vez mais parecidos com o corpo humano, além da diversidade dos modelos, o que contribui para garantir equidade de gênero na avaliação de riscos, proteger adequadamente pessoas idosas e testar veículos considerando diferentes posições de assento, uma vez que, segundo Leonardo, os veículos autônomos nível 5 são uma questão de tempo. O executivo ainda trouxe um roadmap com iniciativas e desafios para alcançar a Visão Zero: um cenário sem mortes no trânsito até 2050, o que exige melhorias contínuas em tecnologia, regulamentação e design, indo além das soluções óbvias e enfrentando as camadas mais complexas da segurança veicular.