Não é exagero dizer que a pirataria é um câncer metastático que se espalha e corrói, via motivação econômica, todo o tecido social. No Brasil, infelizmente, não é diferente. Pelo contrário, órgãos ligados à fiscalização do mercado ilegal apontam que a pirataria é crescente no País, prejudicando empresas, trabalhadores e a sociedade em geral por abastecer o mercado com produtos não sujeitos à fiscalização dos órgãos competentes. De difícil mensuração - o mais recente dado estimado do prejuízo para a indústria e para o erário público é de 2022 - o mercado ilegal causou ao Brasil um ônus de mais de R$ 453 bilhões, conforme a Confederação Nacional da Indústria (CNI). O valor, à época, era superior ao PIB do estado de Santa Catarina. Do montante, a maior parte refere-se aos prejuízos diretos com os impostos que deixaram de ser arrecadados (R$ 136 bilhões) e com as perdas registradas considerando 15 setores econômicos (R$ 297
bilhões).
Diante do contexto, não é à toa que o Brasil figure em um ranking nada positivo. Segundo a Iniciativa Global contra o Crime Organizado Transnacional (GITOC), o impacto da produção e distribuição de produtos falsificados é global, mas se destaca em alguns países, incluindo o Brasil. Em 2022, o Índice Global de Crime Organizado colocou o Brasil na 171ª posição em ranking composto por 193 países em relação ao comércio de produtos falsificados. Na América do Sul, o Brasil só fica em posição mais positiva do que a Colômbia, o Paraguai e o Peru.
Campanha: Pirataria no Brasil, não! Calçado só original
Como entidade oficial do setor calçadista, a Associação Brasileira das Indústrias de Calçados (Abicalçados) criou uma campanha de combate à pirataria. A campanha "Pirataria no Brasil, não! Calçado só original" irá trabalhar com diversas searas. Uma delas é posicionar a Abicalçados junto aos seus associados, órgãos públicos e a sociedade no geral, sobre a importância do combate à pirataria e à falsificação de calçados. Já o pilar da informação buscará levantar dados daqueles que operam sem regulamentação e padronização dos seus produtos no mercado brasileiro. “As informações de calçados falsificados serão recebidas por meio do e-mail [email protected]. Após uma breve apuração, enviaremos essa comunicação aos órgãos de segurança competentes para que apreendam as mercadorias”, conta a coordenadora da Assessoria Jurídica da entidade, Suély Mühl.
No pilar da integração, a Abicalçados irá realizar uma aproximação com os diversos atores que compõem o sistema de proteção e prevenção contra fraudes e falsificações, e deste modo servirá de interface entre órgãos fiscalizadores e empresas detentoras das marcas falsificadas.
Suély destaca que, atualmente, não é possível mensurar o impacto financeiro e social da pirataria no setor, mas que “a sensação é de um volume vultuoso”. “Não há dados disponibilizados pelo Governo que possam ser compilados para uma ação concreta. As ações são esparsas, sem vínculo entre os órgãos. O Brasil precisa aperfeiçoar seus mecanismos institucionais e interinstitucionais de combate à pirataria e ao crime contra a propriedade imaterial”, comenta a advogada, ressaltando que os impactos não ocorrem somente para as empresas, mas para toda a sociedade. “A pirataria gera sonegação fiscal, trabalho ilegal e riscos à saúde e segurança dos consumidores, impactando a sociedade de forma generalizada. Os produtos pirateados, na grande maioria, não costumam oferecer a mesma qualidade do produto original, sendo prejudiciais à saúde. A pirataria gera desemprego e é uma prática desleal com as empresas que pagam seus
impostos”, diz.
Recentemente, a Abicalçados foi convidada para integrar o recém criado Grupo de Trabalho (GT) para o Combate ao Brasil Ilegal, uma iniciativa conjunta entre a CNI e Federações das Indústrias de todo o País. Farão parte do grupo, em que serão discutidos os problemas e soluções à pirataria, representantes do Governo Federal e do setor produtivo.
Prejuízos
O presidente-executivo da Abicalçados, Haroldo Ferreira, conta que os calçados falsificados produzidos no Brasil são desenvolvidos em galpões e estruturas clandestinas, com mão de obra informal, por trabalhadores que se submetem a trabalhos fora das regras celetistas e sem a segurança necessária, com a falsa esperança de melhores ganhos, visto que desconhecem os seus direitos trabalhistas. “Por outro lado, boa parte dos produtos piratas também são importados de países que possuem baixo nível de ratificação de padrões internacionais de trabalho estabelecidos nas Convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT)”, comenta. Segundo ele, enquanto o fabricante nacional segue padrões internacionais de trabalho, adequa-se a uma agenda ambiental e cumpre com todos os requisitos legais e tributários exigidos, os países, principalmente os asiáticos, comercializam seus produtos falsificados no Brasil sem o pagamento dos impostos, com preços abaixo dos praticados no mercado e sem respeitar as convenções da OIT e nem os mais básicos conceitos de sustentabilidade. “Além de ser uma concorrência desleal com o calçado nacional, esses produtos trazem problemas para o meio ambiente e direitos humanos, e ainda retiram empregos do País”, conclui o executivo.
Receita: fechando o cerco no RS
A Receita Estadual do Rio Grande do Sul vem trabalhando fortemente na mitigação da pirataria de calçados. O auditor e delegado na 4ª Delegacia Regional de Novo Hamburgo/RS, Alcides Seiji Yano, conta que o crime da pirataria é muito difícil de ser combatido, pois as articulações se transformam ao longo do tempo. “Antes da pandemia de Covid-19, as vendas de produtos piratas se davam, sobretudo, em feiras itinerantes. Depois, passou a ter foco em pequenos comércios”, conta. Outra mudança, segundo o auditor, é que o Brasil deixou de ser um receptador de mercadorias ilegais contrabandeadas para se tornar um fabricante e distribuidor desses produtos, até mesmo para outros países.
Yano conta que, por ano, entram somente no Rio Grande do Sul mais de 2 milhões de pares de calçados falsificados, mais de 90% deles provenientes de Minas Gerais. “São fabricantes de características diferentes, com produtos que variam em qualidade desde falsificações facilmente identificáveis até produtos muito semelhantes com o calçado original”. Para facilitar a apreensão dos produtos, o auditor conta que a Receita tem trabalhado com uma maior integração com os agentes de interesse, entre eles a Polícia Civil e as empresas envolvidas. Outro ponto do modus operandi da Receita tem sido a interceptação do produto antes da sua pulverização nos pequenos comércios. “Estamos envidando esforços para integrar nossos agentes locais, Receita Estadual, Polícia Civil do Rio Grande do Sul e os representantes das marcas para que consigamos interceptar o maior volume de carga possível e quem sabe inviabilizar este comércio ilegal. No futuro, entendo que seria desejável e até possível uma integração da Polícia Civil do Rio Grande do Sul com Minas Gerais, visando coibir esta ilegalidade na sua origem”, comenta.
Quando uma marca tem produtos falsificados, Yano orienta que busque, em primeiro lugar, a Polícia Civil, para proceder com a apreensão dos produtos. Segundo ele, a Receita funciona mais como um serviço de inteligência, utilizando os dados provenientes de notas fiscais. “Os produtos vêm com NF, mas são notas de 10, 20 reais por tênis de marcas renomadas, por exemplo. Aí conseguimos articular com a Polícia a interceptação. Mas o caminho, no primeiro momento, deve ser a polícia”, conta.